RECUERDOS DE YPACARAÍ.



No lava-jato da esquina ouvi o mais surpreendente, aberto, franco e emocionado relato de um homem na faixa dos quarenta, que também como eu esperava que a imensa fila de carros diminuísse. Não houve intróito, parcimônia ou outro cuidado nenhum de suavizar o seguinte diálogo, entre nós:

-E pensar que já fui homossexual! - Disse-me o cara, olhando-me nos olhos, firme e resoluto.

-Parou? Parou, por quê?- insinuei uma brincadeira, logicamente pensando que se tratava de uma destas conversas passa-tempo sem maiores comprometimentos.

-Estou
lhe conhecendo agora.Vou contar-lhe uma segredo , porque jamais nos veremos. Moro, as margens do lago de Ypacaraí, no Paraguai, onde “tudo começou”, entende? Mas, embarco amanhã. Só vim para o casamento da minha filha. É verdade meu amigo, eu já fui homossexual e parei – finalizou, saudosamente orgulhoso.

Entre constrangido e surpreso comecei a rir, só para fazer alguma coisa. Ninguém fala isso assim, na lata, num lugar público, gratuitamente, para quem nunca viu. E o “ex” continuou:

-Eu tinha uns 15 anos. Achava que as meninas era o melhor lado do casal, porque podiam dar para os meninos.
Meus colegas ficavam falando delas e eu só ficava olhando e morrendo de inveja...delas.
Dizia pra mim mesmo que jamais beijaria a boca de uma mulher. Sexo, com elas nem pensar. Achava sim os meninos bonitos, sentia atração pelos seus pêlos e os meus, eu os detestava.
Vivia infeliz, pois, meus pais eram católicos fervorosos, tinham até conhecimento com alguns burocratas lá do vaticano. Meus três irmãos todos mais velhos eram homens-machos.
Um dia descobriram. Meu pai me bateu muito, minha mãe também. Ficavam revezando.
Conseguiram até que o Papa me excomungasse. Fui expulso de casa.
Os vizinhos todos souberam Fui morar com uma tia numa fazenda em Mato Grosso.
Veja como o castigo vem a cavalo. Passei a ser o prato preferido daqueles peões. Foram semanas inesquecíveis. Minha tia descobriu. Mandou-me de volta.
Meus pais e meus irmãos, novamente me encheram de pancadas e decidiram: colégio interno.
E lá fui eu. Outra surpresa. Aquele monte de garotos presos ali dentro, uns degustavam os outros e, eventualmente, até os inspetores entravam na brincadeira, não necessariamente nesta ordem. Está entendendo? -perguntava-me demonstrando absoluta tranqüilidade.

-Estou perfeitamente – respondi, meio constrangido.

-O colega também foi ou é gay?

-Não, nem fui, nem sou.

-Mas o futuro é uma incógnita, certo? (risos).
Pois bem, quando nossa família descobriu que aquilo era um caldeirão de prazer sexual pedagógico tirou-me de lá e já estava na idade de servir o exército.
Aí é que eu encontrei motivos, e elevada honra de servir à pátria Servia desde o mais simplório recruta a patentes mais altas. Aquilo era uma verdadeira churrascaria rodízio.
Ao dar baixa, minha reputação continuava em alta entre os tarados civis e militares de plantão, foi quando decidi parar.
Desesperadamente, durante algum tempo lutei contra aquela vontade maior, duríssima e muito profunda de continuar.
Finalmente, com muita terapia e noites insones, hoje estou aqui inteiramente, “recuperado” e muito irritado - irrompe num desabafo colérico.
-Mas, qual a razão desta ira?
-A razão?
-Você não lê jornais, não vê televisão, não vai ao cinema, teatro, nem a passeata gay?
Meus amigos simpatizantes, hoje são milhões desfilando suas plumas pelas principais capitais do país.Até os pais levam seus filhos para a passeata. Fazem piquenique com a família no meio-fio!
O pai ainda aponta para, os gays mais conhecidos, chamando-lhes pelo nome. Sabem o nome de todos. Os meus me encheriam de pancada! E gay de todas as partes do país e do mundo.
Desfilam de Rainha do Tatuapé, Sereia do Tietê, Mocinha do Guaraquecetuba, de fio dental, hiper maquiadas, depiladas, siliconadas, assediadas por aqueles paraibanos imensos de obras e tocam até o, hino nacional...

-Não exagera, isto é em São Paulo.

-Absolutamente, em todas as grandes capitais do país, com a presença de políticos, empresários, governadores, prefeitos, Associação de mães pró-orgulho de filhos gays, Associação protetora dos animais, foguetório, as cidades param e eu...

-Ué, você agora é um homem, segundo mesmo declarou "recuperado", deve ter filhos.

-Tenho três, todos gays.
-E sua mulher?

-Abandonou-me e foi morar com uma vizinha. É lésbica! Está vendo o que é um ser homem fora do seu tempo? Sofri , apanhei, fui excomungado, verdadeiro martírio e hoje, já há quem diga que o mundo é gay!

-Você é novo. Volta à ativa - brinquei para descontrair o ambiente.

-Amigo, meu carro já está lavado.Antes de ir só gostaria de lhe dizer que você é uma pessoinha ma-ra-vi-lho-sa, um bofe lindo, vou lhe deixar meu cartão, tem meu celular que só funciona com vibrador, e o endereço lá no bairro dos Jardins em São Paulo.Lago de Ypacaraí era tudo brincadeirinha! É só marcar: telefonemas a cobrar, casa e comida à disposição. E muito prazer é lógico...

-Mas você não disse que tinha se “recuperado”?

-Só queria despertar seu instinto paternal, moreno pecado!

E saindo correndo com os braços bem rentes ao corpo, às palmas das mãos viradas pra frente, a cabeça levemente voltada para três e para o lado, as pernas cruzando uma na frente da outra no melhor estilo de modelo Fashion, gritava:

-Nasci para bailar, pra que negar...

Ao compreenderem a inusitada cena, os fregueses começaram a rir e a aplaudir aquela mini - passeata gay, exclusiva para os freqüentadores daquele lava-jato que, aliás, tem o sugestivo nome daquela música, meio bolero, meio guarânia, bem antigo e no melhor estilo mela cueca: Recuerdos de Ypacarai.